É dia 14 de Novembro de 2020 e são 12h30. Saímos dos Estúdios Sirigaita e dirigimo-nos ao Rossio, curiosos para ver com os nossos próprios olhos como corria a manifestação em Lisboa, depois da de anteontem no Porto, mas também testemunhar o efeito de uma cidade que entra num recolher obrigatório, em plena luz do dia.
O céu está cinzento, chuviscos caíram sobre a cidade pela manhã. Não há muita gente por perto, a maioria das pessoas desloca-se rapidamente, as lojas fecham as persianas. Chegamos ao Rossio saudados pelo hino nacional português, uma praça meia cheia – cerca de mil pessoas que tendo em conta estes tempos é um número considerável. Quando o hino termina, a Grândola, vila morena começa imediatamente. Olhamos à nossa volta e vemos muita gente comum. Enquanto no palco começam os discursos dos organizadores, nós passamos entre o povo. A esmagadora maioria usa máscaras, as pessoas não estão realmente longe umas das outras, mas também não estão juntas. A atmosfera é um pouco sombria, embora as vozes do palco soem bastante alto.
Pensamos que, entretanto, a cidade à nossa volta irá esvaziar-se, porém vemos mais pessoas a chegar para a manifestação. Se ao microfone, a falar, surgem principalmente pequenos empresários (restauração, hotelaria, turismo, cultura) a praça parece ser constituída de um pouco de tudo. Há trabalhadores e trabalhadoras, há patrões de restaurante, motoristas de autocarros de turismo. Muita gente comum.
Vêem-se jovens, afrodescendentes, migrantes, reconhece-se o empregado de mesa da tasca onde se vai sábado à noite. Mas também observamos: betos, um padre, um grupo de fascistas, muitos polícias à paisana. Para além de uma bandeira do Movimento Cumprir Portugal (que acabámos de descobrir que tem por objetivo “voltar ao mar”), não existem outras siglas para além da do Movimento Pela Liberdade, que tinha convocado uma manif para a Avenida da Liberdade ao mesmo tempo.
Toda a comunicação é feita com uma linha gráfica comum na qual são expressas poucas revindicações (na essência “querem trabalhar”), alguns “factos” tais como: “68% das infecções ocorrem em casa” ou “Não somos um movimento somos pessoas cansadas de arroz”.
As intervenções sucedem-se, por vezes mais sensatas, por vezes muito contraditórias. Aqueles que falam ao microfone, falam genericamente em nome de “empresários, trabalhadores e comerciantes”. Fala-se muito sobre a responsabilidade dos bancos, há muita raiva em relação ao governo, cujas escolhas parecem ilógicas. Os migrantes também intervêm ao microfone. Quando há intervenções “mais nacionalistas” a multidão não aclama como quando se enfurecem contra o governo (e os impostos). O slogan de maior sucesso é “vocês estão a matar os que querem trabalhar”.

Aqueles que pertencem à “indústria da cultura” querem enfatizar que “a cultura é segura”. A certa altura, um dono de uma discoteca decide fazer-nos dançar ao ritmo de RITMO Black Eyed Peas e J Balvin, dizendo: “As coisas mais importantes na vida não são os psicólogos, mas quem dá comida e faz dançar”.
Decidimos que já vimos o suficiente, são 14h30 e deixamos uma praça que promete permanecer ocupada a tarde toda. O Martim Moniz está deserto, apenas alguns trabalhadores de uma obra vagueiam por um edifício. À medida que subimos a colina, perguntamo-nos sobre o que vimos. Vimos tantas pessoas juntas. Os padrões hierárquicos pareciam os mesmos do trabalho – os patrões que comandam o protesto e reivindicam em nome dos seus trabalhadores e das suas trabalhadoras. E isto é estranho de se ver, pelo menos nas ruas. Mas também vimos os olhos e ouvimos as vozes desses trabalhadores e dessas trabalhadoras, vimos tanta preocupação e tanta raiva. Pensamos que isso só irá aumentar e alastrar a outros grupos.
Olhando em redor, com a cidade deserta, estamos quase perdidos, sem pontos de referência. Chegamos ao topo da colina e ouvimos a amplificação do Rossio a rasgar o silêncio surrealista da Lisboa no recolher obrigatório. E parece como um zumbido de uma tampa que, cada vez mais prensada, está preste a saltar.
Tano