“Fellow Prisoners” de John Berger – Uma reflexão sobre o presente como prisão.

John Berger morreu em Paris nos inícios de 2017. Tinha mais de noventa anos. Num dos seus livros mais belos,Here is Where We Meet, que começa na sombra do cipreste horizontal do Príncipe Real e que tem como cenário memorável o Aqueduto das Águas Livres, Berger explica que os mortos convivem com os vivos e que o número de vidas que contém cada vida é incalculável. Durante o primeiro confinamento, a sua voz foi para mim uma voz presente e companheira. E foi mesmo, literalmente, porque o texto “Fellow Prisoners” pode-se ouvir na Internet, lido pelo o próprio autor. 

Trata-se de um texto breve, escrito em 2008, que tem circulado em diferentes versões, através de vários meios e que tem sido traduzido em diversas línguas. Entre elas o português. A editora Antígona publicou-o em 2018 numa bela edição com um posfácio de Júlio Henriques, que é também o tradutor. O título escolhido foi Entretanto. Em castelhano foi publicado pela primeira vez pela revista zapatista Rebeldía em Janeiro de 2010, poucos dias depois da leitura do texto no primeiro Seminario de reflexión y análisis organizado pelo CIDECI-UNITIERRA em San Cristóbal de las Casas, Chiapas, México. John Berger, que em 1972 doou às Panteras Negras metade do dinheiro do Booker Prize que tinha ganho com o seu romance G., acompanhou de muito perto a rebelião zapatista

É difícil resumir a obra de John Berger. Pintor, poeta, dramaturgo, crítico de arte, escritor, storyteller no fim de contas, Berger coloca uma atenção no sensível fora do comum. Escreveu sobre os modos de ver, sobre a desaparição das formas de vida rurais na Europa, sobre a migração, sobre o caderno de desenhos perdido de Spinoza, e muito mais. E sempre com um compromisso político e vital desde baixo e à esquerda.  

Em Entretanto, Berger vai à procura de palavras “para descrever o período da história no qual estamos a viver”. E encontra uma figura, uma imagem que condensa o presente: a prisão. “No planeta todo”, afirma Berger, “vivemos numa prisão”. E não é metafórica, diz, mas real. A relação do poder com o espaço tem mudado, e o raio de acção do capitalismo financeiro, amplificado pela velocidade e a transparência panóptica do ciberespaço, reordena a geografia de um planeta-prisão no qual os “fellow prisoners” são a maioria da população. O escritório, o centro comercial, a urbanização, o elevador, são as celas para os assalariados, cada vez com menos tempo e opções, a viver uma vida marcada pela pressão e as exigências da produção de benefícios. O campo de refugiados, o arame farpado da Fortaleza Europa, os apartamentos sobrelotados, os centros de internamento de estrangeiros, são as celas que excluem as trabalhadoras pobres, transformadas em criminosas. 

Os “fellow prisoners” diz Berger, que conheceu muitas pessoas presas e escreveu sobre o amor através das grades, são peritos em calcular “a quantidade de liberdade circunstancial que existe numa determinada situação”. E nunca aceitam o presente como definitivo. Ao contrário dos poderosos, que costumam viver o espaço de uma maneira abstracta, os “fellow prisoners” conhecem bem o interior da prisão, onde as paredes das celas se tocam e estão lado a lado. E isto abre a possibilidade de escuta, de enraizar e de ajuda mútua entre diferentes. Isto, sempre na condição de que os “fellow prisoners” ignorem a linguagem dos carcereiros, que tem por objectivo “mantê-los num estado de incerteza passiva e relembrar-lhes que na vida só há risco e que a Terra é um lugar inseguro”, para espalhar o medo e fomentar a ilusão que a única salvação é individual, quando na verdade é o oposto. “Aos poucos”, diz Berger, “vamos encontrando a liberdade, não fora, mas nas profundezas da prisão”. 

A leitura ou a escuta deste livro, não vai dar nenhuma resposta à pergunta sobre como a pandemia vai alterar a ordem social e política. Mas se calhar a experiência dos confinamentos que estamos a viver pode abrir fissuras vivenciais que façam ressoar o texto com novos ecos e em novos ouvidos. Perante a pergunta sobre como vai ser o mundo depois da pandemia, Entretanto convida a fazer uma reflexão prévia. Qual era o mundo em que vivíamos antes e qual é o mundo em que vivemos durante a pandemia? E qual é a relação deste mundo com a situação presente? E quem é este nós? 

Berger diz: “vivemos numa prisão”. Mas imediatamente depois avisa: cuidado com a primeira pessoa do plural, porque os poderosos utilizam-na para falar ilegitimamente em nome dos oprimidos. A linguagem dos carcereiros, afirma Berger, é “bullshit”, e precisamos de a ignorar porque não nos deixa pensar. “Fellow Prisoners” convida-nos a procurar formas autónomas de perguntar, de dizer e de comunicar de cela em cela. Só assim poderemos conceptualizar a pandemia não como um acontecimento isolado que modifica a partir de fora o curso da história, mas como um fenómeno constitutivamente marcado pelas relações de poder e de dominação existentes. Como argumentou Ángel Luis Lara em Março de 2020, sublinhando as consequências dos modos intensivos de produção agropecuária na circulação de novos vírus emergentes, “não há normalidade à qual regressar quando aquilo que tínhamos normalizado é o que nos levou ao que temos hoje. O problema que enfrentamos não é só o capitalismo em si, mas também o capitalismo em mim. Oxalá o desejo de viver nos torne capazes de ter a criatividade e a determinação para construir colectivamente o exorcismo que necessitamos. Isso, inevitavelmente, vamos ter que fazê-lo, nós, pessoas comuns.  Sabemos, através da história, que os governantes e os poderosos vão esforçar-se para fazer o contrário”.

Tiago Alfaiate

Leitura integral feita por John Berger do livro “Fellow Prisoners”:

Publicado por Rádio Gabriela

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